sexta-feira, outubro 20, 2006

Como já dizia Mangabeira...

Para quem anda de ônibus não é muito difícil se deparar com cenas pitorescas, sobretudo quando o coletivo cruza as ruas e avenidas de Salvador. Certa vez, Otávio Mangabeira, ex-governador da Bahia disse a seguinte frase: “Pense em algo excêntrico, inusitado ou em algum absurdo qualquer: ele já aconteceu na Bahia”. Eu, como uma freqüentadora diária desse meio de transporte que em determinados horários assemelha-se aos paus-de-arara, veículos que transportam pessoas do interior para o trabalho, já presenciei as mais variadas situações que confirmam essa tese.
O dia era comum como qualquer outro na cidade. Céu ensolarado- quer algo mais comum do que isso na capital baiana? Como todos os dias da semana, havia saído da faculdade em direção ao estágio que fica localizado no lado oposto de onde estudo. Para diminuir meu sofrimento, consigo a carona de uma amiga até pouco menos da metade do caminho. É um momento de glória, que dura pouco mais de 15 minutos. Logo após, me encontro com o duro choque da realidade, ao descer do carro e deparar com um calor que os relógios afixados na cidade insistem marcar no máximo 27º, mas que trazem uma sensação térmica, não aquelas comprovadas por aparelhos meteorológicos, mas sim aquela sentida no pele, de 40º. Lógico que isso no auge do “hiperbolismo”.
Passado os 5 minutos iniciais, que servem para permitir que o corpo se adapte a nova temperatura, do céu (ar-condicionado do carro) ao inferno (a temperatura de Salvador), aguardo no ponto o ônibus que me levará ao trabalho. Ao subir não percebi nada diferente. No coletivo, se encontravam presentes os mesmos biótipos que compõem a população da cidade, e nem um turista destoando da realidade étnica local modificava aquela “paisagem” rotineira. Os passageiros aproveitavam o momento para realizar atividades variadas. Uns ouviam walkman, que atualmente foi substituído pelos portáteis MP3, mas insisto em denominar qualquer aparelho de som com fones de Walkman, talvez num surto saudosista peculiar a pessoas que chegaram a determinada idade. Que loucura, a minha! Mal completei duas décadas e venho com esse discurso de ancião que têm saudades dos sabonetes Phebo ou da Companhia Vera Cruz.
Voltando ao assunto... Outros liam essas revistas de R$1,50, que contam desde a cor da calcinha que determinado artista da “moda” usava numa festa badalada até receitas de comidas servidas aos monges tibetanos. Eu, com a fome peculiar ao horário das 13h, aproveitava, como sempre faço dentro do ônibus, para refletir sobre várias coisas. A situação política nacional, um amor do passado, o figurino de algum “desavisado” que passava ao meu lado e outras coisas que uma mente temporariamente desocupada pode pensar. Entretida nos meus devaneios, logo fui “puxada” pra realidade. Um dos milhares de vendedores de balas que ocupam a cidade subiu no ônibus iniciando o seu marketing, que ao longo do dia deve ter sido repetido milhares de vezes.
– “Pessoal, boa tarde! Só gostaria de um minuto da atenção de vocês, eu podia estar matando...” .
Ele trazia um cesto bastante variado. Chocolates, chicletes, balas de diversos sabores, marcas e preços. A presença do “baleiro” não me chamou atenção, pois depois do meu último tratamento dentário e o impacto que ele causou no meu bolso, criei sérias resistências a essas “balinhas”, pelo menos até se encerrarem as faturas do cartão.
Foi até o fundo do ônibus e voltou quando uma senhora que estava à minha frente o abordou:
–Eu não devia fazer isso, moço, disse pegando um porta-moedas de dentro da sua bolsa.
-Por que? Perguntou intrigado o baleiro e àquela altura eu, que estava próxima a situação, também me perguntava o motivo da resistência da senhora.
–Sabe, moço eu sou diabética, disse já com a primeira bala em uma mão e colocando as outras na bolsa, mas não resisto a doces.
Com um olhar assustado o vendedor começou a aconselhar a senhora, que já mascava a primeira bala. Começou a enumerar casos de conhecidos que sofriam do mesmo problema, com relatos de amputações e até de mortes. Eu, pasma, só aguardava o momento em que ele tomaria as balas da senhora, de tão preocupado que parecia estar. Mas, a questão da necessidade, falou mais alto, mesmo aconselhando a mulher, ele não pegou as balas de volta e muito menos devolveu o dinheiro, talvez ele tivesse dado um recado alertando-a que aquela deveria ser a última vez que ela cometesse aquela loucura afinal, como ele mesmo disse:
–A senhora pode morrer, é bom não brincar.
No mínimo uma situação curiosa, pra não dizer surpreendente. Um baleiro dando conselhos a uma diabética! Não desmerecendo a capacidade dele de compreender a situação. Pelo contrário, acho inclusive que os populares têm explicações muitos mais práticas, em relações à saúde, do que os próprios médicos, mas se torna engraçada, visto a solicitude que o ambulante aconselhou a senhora e a confiança que ela teve em revelar uma situação tão pessoal para aquele que podia ser algoz de uma crise hiperglicemia.
Meio tonta com aquela situação, me segurava pra não ter uma crise de riso. Olhava para os lados e percebi que ninguém, além de mim, havia notado aquele dialogo inusitado. Mal havia me recuperado daquela situação, entra mais uma “surpresa” no coletivo. Um casal, um pernambucano e uma italiana, que tocavam violino e flauta doce respectivamente. Clássicos da música nacional e mundial, fazia parte do seu repertório. Foi um momento muito bonito. As músicas eram boas de ouvir e agradou a todos. Depois, como esperado, saíram recolhendo o valor dos “ingressos” após o show, que deveria ser gratuito. Diante do profissionalismo dos músicos chega a ser constrangedor não contribuir com qualquer valor, como eles sempre frisam, após as apresentações. Fiquei me perguntando depois que os artistas haviam descido do ônibus, em que outro lugar do país me depararia com aquelas situações, quando tomei um grande susto.
Boa tarde pessoal!
Ah não! Um palhaço? Ele pertencia a uma ONG que “leva alegria a crianças hospitalizadas”, como ele mesmo disse. Dessa vez, os passageiros, deixaram a apatia de lado e riram bastante. Em menos de 30min já havíamos visto cenas suficientes para pagar o ingresso de qualquer teatro. Meu ponto já se aproximava e pela primeira vez na vida, estava triste em ter que deixar um ônibus. Tinha criado uma relação de respeito com aquele “ônibus-artista”, mas tinha que ir embora. Ele já subia a ladeira que antecede o lugar onde fico, e já havia levantado para seguir à porta de saída. Assim que ele parou desviei o caminho de um vendedor, que se antecipou e subiu antes que eu descesse. Mas ainda tive tempo de escuta a frase inicial: Pessoal, boa tarde! Só gostaria de um minuto da atenção de vocês...
Ah Otávio... Como conhecia essa terra, viu?