sábado, agosto 26, 2006

E a rosa que vivia fechada...

Ela estava sempre por ali. Sentada na escada ou deitada na rede da varanda. Montava e desmontava uma pobre boneca de madeira dada por sua avó materna. Foi o único presente que ganhou do qual realmente gostava, os outros, não interessavam tanto. Sempre que os recebia não demonstrava nenhuma gratidão. Fazia religiosamente o mesmo gesto: abaixava a cabeça e o levava para a prateleira do quarto que sozinha ficava. Com o passar do tempo, as pessoas não faziam mais questão de levar nada para ela. Aquela criatura sem expressão, sem emoção e de certa forma, um tanto retardada, não cativava a simpatia de ninguém. Sempre observava os outros e preferia assim. Via suas irmãs saindo e, escondida, olhava atentamente cada movimento e palavras trocadas entre elas. Conhecia mais de cada uma, do que talvez elas mesmos pudessem imaginar. Não sabia articular muito bem os pensamentos, então preferia ficar calada. Porém, reconhecia o caráter de alguém numa simples troca de olhar e quando uma pessoa que ela não considerava confiável se aproximava, ela chorava incessantemente. Era o seu jeito de estar no mundo.
Antes comia na mesa com todos, mas a forma como o fazia começou a incomodar toda a família. Antes de comer, Flor pegava com as mãos todos os alimentos e espalhava sobre a mesa para ter certeza que ali não havia nada que pudesse lhe fazer mal. Passou então, a comer no quartinho dos fundos, sempre acompanhada da sua bonequinha de madeira. Quanto mais crescia, mais sozinha ia vivendo. Não se enxergava como parte daquele mundo. Preferia aquele que ela havia construído ao seu redor. Não gostava do universal e adorava, o que para muitos, era detestável. O início da sua vida parece ter sido fadado ao fim. Não sentia a motivação peculiar aos seres humanos com saúde aparentemente estável, situação financeira equilibrada e família “normal”. Para ela tudo não representava nada, aliás talvez o nada lhe representasse muito mais. Então não tinha devoção pela vida, porque com ela ou sem ela tudo era muito igual. Além de estar com sua bonequinha, que nunca largava, um outro momento a deixava plena: caminhar na areia da praia. Ficava horas alternando os passos entre a areia e a água, pulava e ria como nunca. Era o seu momento de vida. Um dia como todos os outros, Flor acordou, comeu, brincou com a boneca de madeira na varanda e depois entrou no quarto. A lua estava cheia, a brisa era fria e a noite era de sexta-feira. Ao olhar na janela, Flor viu a sua boneca no céu. Como pode a sua companheira, que ela nunca largava, estar lá? Olhou de volta para o quarto e ela continuava no mesmo lugar: na cama com o sorriso já um pouco apagado devido ao tempo de uso. Mas Flor, conseguia vê-la no alto, próximo à lua, com um sorriso lindo que a chamava pra perto. Sem pensar ela resolveu seguir o caminho da sua linda boneca de madeira, que agora do alto, a levaria pra outro lugar. Quem sabe assim para encontrar o que já tinha ouvido falar que era a vida, e que definitivamente já tinha descoberto que não era no lugar onde morava. Desceu as escadas, saiu pelo portão rapidamente, atravessou a rua entre carros e chegou à praia. Conseguia ver sua boneca a chamando e a cada passo seu sorriso aumentava. Já sentia a água do mar no joelho, olhou para trás e suspirou alto: Enfim vou encontrar a minha vida.